sábado, 25 de outubro de 2008

Entrevista do vander Lee ao site Descubraminas

"Eu amo esse lugar". O poeta, compositor e cantor Vander Lee conversou com o Descubraminas sobre sua vida, carreira e amor por Minas Gerais. Com muita simplicidade, o artista fala de suas raízes e do orgulho de ser mineiro.


Por Brenda Lara


DM: Seu pai nas horas vagas pegava o violão e começava a cantar com os amigos próximo à casa onde moravam, músicas de Teixeirinha, Trio Parada Dura, Tonico e Tinoco. Sua carreira de músico foi influenciada pelo seu pai?

VL: Claro, a relação dele com a música era algo tido como salvação. Era um momento de terapia. Meu pai não era uma pessoa mística, nem religiosa, quando ele não estava trabalhando, coisa que ele mais fazia, ele estava na mística da música, do violão. Essa paixão foi repassada para filharada toda, todo mundo em casa é muito apaixonado por música.

Quanto ao estilo musical, penso que a base da música brasileira é regional, muita gente pensa o contrário, que as coisas vem de fora, que existe uma cultura externa que atua sobre o Brasil nesta coisa de colonização e aí a música surge com essas influências. Mas na verdade, a música vem da terra, igual a planta, a flor, o ar. Essa cultura da música regional me trouxe uma boa base, uma raiz, uma noção de estética brasileira com as palavras que eram usadas.

A partir da influência de meu pai comecei a ouvir rádio e música americana que conheci através do rádio. Clube da Esquina veio depois, porque na minha infância ainda não era sucesso, mas já existia há muitos anos. O próprio mineiro não consumia, não conhecia a música do Clube da Esquina. Eu conheci o grupo quando comecei a cantar na noite pela Savassi afora. Ouvia meus colegas tocar e perguntava quem cantava a música, e aos poucos fui conhecendo músicas de Lô Borges, Milton Nascimento, Flávio Venturini, e fui me interando. Mas antes disso, minha cultura era basicamente a informação que recebia de meu pai. Na época, ouvia-se muito nas rádio samba, pagode, Alcione, Beth Carvalho, Cartola, Luiz Melodia, João Bosco. Ficávamos limitados ao que as rádios executavam.

Mesmo meio a essas músicas e à música americana que tocava na rádio, consegui filtrar muita coisa legal. Sempre tive bom gosto, modéstia parte, e consegui enxergar o que tinha de bom e original, e o que não era no meio de tudo. Comecei a tocar na noite em 1986, nesse período eu já tinha passado por uma experiência com banda no bairro Olhos D’água onde fui criado. Queria fazer uma carreira solo, já tinha uma alma meio solitária, de trovador. Sempre fui muito quieto e de alguma forma essa coisa me tocava muito. Já sentia que meu caminho não era trabalhar com grupo, era solo mesmo.

As letras que eu escrevia nessa época já me mostravam uma coisa muito pessoal, muito original, já apresentava uma coisa para ninguém cantar, e eu tenho que defender isso. Então caminhei na direção do solo mesmo. Nesse período, a noite me serviu para desenvolver a questão do palco, coisa que não tinha experiência nenhuma, e também para aprender um pouco mais sobre tocar músicas de outras pessoas, vivenciar outros repertórios, aprender harmonia, executar melhor o violão, aprender a lidar com o microfone e com o inusitado que acontece nos bares.


DM: Enquanto esteve em serviço militar você chegou a compor músicas. Conte-nos sobre essa fase.

VL: Era algo divertido, servi o exército em 1985, no fim da ditadura, exatamente quando Tancredo Neves se elegeu. Um fato marcante foi quando ele morreu. Havia todo um clima tenso no país. Eu tive que ir para o quartel, colocar a farda e ficar de prontidão em uma esquina. Foi a única vez que senti que era militar, porque o alojamento era mais uma escola disciplinadora. Lá eu malhava muito, fazia muita faxina, acampava. À noite, tínhamos muitas horas vagas, a gente jantava às 7 da noite e o toque de recolher era às 10h. Aqueles que tinham intenção de continuar no exército passavam por um curso, e como eu nunca quis ficar não tinha nada pra fazer.

No horário que os outros faziam o curso, eu tinha esse horário da noite livre e a solidão do alojamento. Me lembro que no alojamento existia uma escada que descia para os banheiros e tinha uma acústica maravilhosa. Sentava lá e ficava tocando, em pouco tempo meus colegas iam chegando e parando por ali. Fiz um monte de concertos para eles, com as minha canções acabava ajudando amenizar a solidão daquele lugar. No início, quando entramos para o exército, passamos por um período de quarentena. Eram quarenta dias sem ir em casa, isso era um choque. Nessa quarentena, fui muito seresteiro e alegrei o coração da meninada.


DM: Algumas personalidades artísticas como Maurício Tizumba e Elza Soares cruzaram o seu caminho e de certa forma, ajudaram na divulgação do seu trabalho. Se não fosse essa ajuda como você imaginaria sua história?

VL: A Elza foi para mim uma espécie de madrinha. Antes de conhecê-la, eu era um cantor de bar bem sucedido em Belo Horizonte e em cidades próximas. No meu raio de atuação, dentro do universo que eu conseguia apresentar, as pessoas gostavam muito de me ouvir cantar, e em alguns lugares as pessoas já pediam minhas músicas, de tanto que eu tocava. Mas eu não tinha ainda a noção do espetáculo, que é o show mais limpo composto por luz, vestimenta, etc.

Quando vi a Elza, aquele furacão em cena, tive esse insight e pensei “tenho que aprender um pouco mais sobre a questão cênica”. Ela me deu a oportunidade de participar de alguns de seus show’s ora abrindo, ora dando canja. Viajei algumas vezes com ela para o Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Fizemos um show também em BH. Quando nos afastamos, eu já era outra pessoa em termos de concepção artística.

No segundo disco - “No Balanço do Balaio" - , eu já vim com essa influência muito forte do samba, da coisa dela e ao mesmo tempo sacando que essa coisa da brasilidade era o caminho do sucesso. Tudo estava muito pop e resolvi trabalhar com essa brasilidade. E deu certo.

Meu primeiro disco tem muita coisa brasileira, mas é muito pop, ele buscava uma tentativa de modernidade que na verdade eu não dominava. Fiquei muito nas mãos dos músicos, e por isso, pensei que faltou verdade na coisa, apesar das composições serem minhas. O segundo disco já foi diferente, trabalhei com músicos que eu não nunca tinha tido contato, foram contratados só para o disco, e aí, eu mesmo dirigi a produção. A partir desse momento, meus discos começaram a virar projetos distintos, mesmo que o repertório tivesse sido usado antes. Comecei a fazer disco para um determinado público, a idéia era não ampliar demais. A consciência do que é carreira e o que é projeto veio da Elza.


DM: Em uma de suas canções você diz que deseja “viver menino, morrer poeta”. Você se considera um poeta?De onde surge a inspiração para compor?

VL: Tudo que eu sou em essência, foi formado na infância, como todos nós. Sempre fui muito observador, muito solitário em uma família de muitos irmãos, em que os pais trabalhavam muito. Não havia essa violência de hoje, ficávamos muito solto para brincar. Não tive uma turma ou um melhor amigo, meus dois irmãos mais velhos tinham cada um sua turma, e eu tentava acompanhar, mas quando eles iam fazer alguma coisa realmente interessante, eles me deixavam para atrás.

Então fui aprendendo a ficar sozinho e cuidar das minhas irmãs pequenas em casa. Acabei desenvolvendo a alma feminina que tanto se fala, pois meus pais e meus irmãos mais velhos trabalhavam muito, tinham que suprir a casa. E eu fiquei de babá desde novo, cozinhando, lavando louça, fralda.

Tenho memórias dos passeios no alto da montanha em que ficava vendo a cidade. Até mesmo quando meus filhos nasceram, eu continuei mantendo este hábito de caminhar muito no mato, em trilhas. Diariamente faço uma hora de caminhada sempre em lugares que me dão muita visibilidade, e isso, foi me ensinando a construir imagens. Meu trabalho é como de um pintor. Comecei então, a trabalhar com essas imagens que eram coisas que eu queria acreditar. A partir do momento que eu via, eu começava a descrever essas imagens e ao descrever, eu ia alterando-as, aí iniciou-se a poesia.

Eu não sabia que isso era poesia, para mim era pura loucura, uma bobagem de quem não tinha o que fazer. Depois fui descobrir que isso é ser poeta. Há dez anos atrás se alguém me dissesse que eu era poeta, eu ria na cara. Depois descobri Manuel de Barros, este poeta me fez sentir útil para a poesia. Ele trabalha com um tipo de matéria muito parecida com a que eu trabalho: lâmpada queimada, arame farpado, esparadrapo. E ele desenha isso de forma muito livre.

Essa liberdade me fez abrir uma janela imensa dentro de mim e pensei “Ai meu Deus, porque perdi tanto tempo reprimindo isso”. Hoje escrevo diariamente, tenho mil projetos para desenvolver em torno da poesia. A palavra associada à imagem é a minha meta, mais que a música. Descobri que a música para mim, vem da família, do meu pai, mas a poesia nasceu dentro de mim, na minha forma de acreditar nas coisas. Pelo fato de não ter tido uma educação religiosa, não ter estudado, não ter tido livro, eu fui uma criança livre até hoje, por isso “viver menino, morrer poeta”, isso é muito pessoal.


DM: Em 2002, Gal Costa gravou “Onde Deus possa me ouvir” de sua autoria. Conte-nos a emoção que sentiu ao ouvir uma canção sua, na voz de alguém tão importante para a MPB brasileira.

VL: Foi uma relação muito profunda. Essa música foi composta no período que eu cantava nos bares e no meu conceito, não era uma boa música. A pessoa que compõe chega um período que não tem mais noção de qual música é melhor, tudo é filho. É a mesma coisa que virar para uma mãe que tem quinze filhos e perguntar qual ela mais gosta, qual o mais bonito.

Nessa época eu não tinha noção do tanto que a coisa era maior, que a criação era maior que o criador. Eu relutava em gravar essa música, já tinha feito dois discos e ainda não tinha gravado ela. Foi quando uma gravadora do Rio de Janeiro começou a me cortejar e queria que eu fosse até lá para fazer sucesso em televisão, e eu não queria exatamente isso. Eu tinha dois filhos aqui, minha filha estava para nascer, meu pai tinha falecido, eu queria ficar por aqui mesmo.

Gravei uma fita com várias músicas para esta produtora. E o produtor que recebeu a fita, coincidentemente, estava produzindo o disco da Gal. Ele levou duas músicas minhas para ela gravar. Ela gravou essa música e foi um sucesso. Logo depois, aconteceu algo grave, eu desentendi com esse produtor e a gravadora que ia lançar o disco, fechou. O disco parou de circular, mas a música já estava gravada. Depois de um ano e meio a música estava estourada e não sabíamos como isso tinha acontecido. Foi um sucesso espontâneo.

No ano seguinte, fiz um disco ao vivo e acabei incluindo a música com uma versão de voz e violão. O disco estourou e uma coisa acabou puxando outra, foi aí que eu descobri que quem tinha que cantar essa música era eu mesmo. Nada contra a Gal, é lindo ouvir ela cantar. Mas na época entrei em um conflito muito grande com relação a compor para as pessoas e compor para mim. Não sabia distribuir o que era meu, tinha um apego muito grande à minha criação. Toda vez que alguém gravava minha música, eu tinha que gostar muito para aprovar e aí esbarrava no ego das pessoas. Como dizer à pessoa que eu não gostei do que ela fez, como vetar?

Fiz análise para resolver essa questão, aprendi dentro do meu repertório a entender o que é mais pessoal e o que é mais estético, mais universal. As coisas mais pessoais geralmente eu mesmo canto, e as coisas mais leves eu coloco para os outros cantar porque não me expõe tanto. Nessa história toda aprendi o desapego, uma questão profunda da arte em cena. Não podemos ser maior do que a nossa criação. Ela é grande, mas nós somos essas pessoas mesquinhas mesmo, amamos pouco, queremos, exigimos e cobramos muito.


DM: Você acredita que hoje a música mineira possa reviver um momento parecido com o Clube da Esquina? Afinal, há artistas como Sérgio Pererê, Marina Machado, você, dentre outros nomes, que vem apresentando uma qualidade musical que faz jus à musicalidade mineira.

VL: Nada se repete, tudo é novo o tempo todo. Nada tem volta. Clube da Esquina tem sua página imensa, é uma história que resistiu há muitos anos em um tempo que a vida andava mais lenta, os problemas eram menores e podia tocar violão na rua. A minha geração tem que fazer algo que dê continuidade a esse movimento, acho que já fiz bastante. Consigo transitar pelo país todo, tenho muitas músicas de sucesso, mas não acredito mais em trabalho coletivo.

Hoje tenho paz, alegria de relacionar com a música, no meu estúdio em casa, sozinho. Eu vivo um viés que é avião, aeroporto, segurança, hotel, palco. Todo mundo me vê, acaba o show, as luzes se apagam e eu deixo de existir. Eu só existo ali no palco, criou-se esse mercado e tudo ficou muito chato, muito previsível.

Vivemos em uma época muito individualista, todo mundo está querendo ser pleno, o que é saudável, mas todos querem ser pleno dentro de sua mesquinharia diária, todos querem tudo, todos os prazeres, as satisfações agora e já. Quando se pensa em coletivo, a primeira palavra que vem à tona é concessão. Você tem que conceder para trabalhar em grupo, uma parte de si talvez tem que ficar um pouco guardada em um momento, e você tem que ser proporcional ao espaço que você ocupa no coletivo e não o que você considera ser. E isso, hoje não está funcionando.

As pessoas estão muito desordenadas. O mundo está fora de foco, não se sabe mais o que é real o que é virtual. Não se tem mais noção do certo e errado, hoje não há mais critérios que desqualifique uma obra e qualifique outra. Os críticos estão perdidos. Alguns têm a sorte que eu tenho de ter uma obra grande, compacta e uma certa história pessoal interessante. Sei que minha história pessoal às vezes é maior que a minha carreira, acho isso lamentável. Interessa o que fiz dela e não o que ela fez de mim.

Tenho a impressão que tudo é muito individual e que o mundo se comunica por um viés muito maior, global. E as tribos estão se dizimando em prol de uma globalização que na minha opinião, é um truque passageiro. Daqui a pouco, isso tende a ter um movimento contrário, de revalorização da tribo, aí sim, pode surgir um momento para trabalhos em grupo com uma vida mais longa.


DM: Natural de Belo Horizonte, em suas canções você retrata costumes, bairros e lugares da capital e de Minas Gerais. Na escolha de seu repertório há a preocupação em difundir a cultura mineira?

VL: Inicialmente, não. Isso surgiu porque eu não absorvia nada de outras cidades. Li pouco, não tive grandes influências externas além daquilo que vivia na noite. Sinto que faço parte desse imaginário de BH. Muita gente me viu crescer aqui fazendo coisas boas e ruins. Eu sou muito conhecido antes da música me expor, era uma pessoa quase folclórica na cidade, uma pessoa que saía nos bares dando canja, vendendo CD’s.

Cantei em quinhentos butecos de BH e sempre fui uma pessoa muito reclusa na minha filosofia. Isso sim, é natural, não houve um projeto de levar a cultura de Minas. Nem sabia que estava fazendo cultura para falar a verdade. Tinha muito prazer de falar das coisas, de brincar com a vida, sempre fui muito livre para criar. Acho que de alguma forma a cidade acolheu a minha obra, minha escrita e minha música como uma coisa do patrimônio dela.

Minas me mima muito, sinto que sou muito amado e querido aqui, há um acolhimento muito gostoso. Toco nas festas mais legais que têm no estado, e sempre em eventos populares, isso me deixa muito feliz. Sinto que sou uma pessoa que ajuda a pensar a vida coletiva da cidade.


DM: Além de Belo Horizonte, quais cidades mineiras já receberam homenagens através da sua música?

VL: Já fiz homenagem à cidade dos meus pais na música “Galo e Cruzeiro”, que é Conselheiro Lafaiete, onde cito algumas pessoas e paisagens. A música “A Voz” cita a cidade de minha esposa, Bocaiúva. Cito uma cidade que tem uma seita religiosa que acabei visitando, que é Matutu. Têm muitas cidades, é difícil falar, porque quando escrevo, as coisas fluem naturalmente.

Rodo muito o interior de Minas, norte e nordeste, e também o interior do Brasil de um modo geral, e os lugares para onde viajo estão evidenciadas na música. Há também algumas músicas que faço homenagens a outros artistas implicitamente para não parecer demagogo, panfletário. É mais um acaso carinhoso do que uma intenção proposital.


DM: Dos lugares mineiros sobre os quais compôs, qual é o mais especial?

VL: Em Minas não sei te dizer musicalmente se eu já reproduzi esses lugares. Eu não trabalho racionalmente como talvez possa parecer, essa coisa de poesia toda certa, rimada. É muito solto, depois de muito tempo que eu componho é que eu começo a enxergar onde eu estava, o que eu queria, o que estava apresentando. É muito espiritual.

Uma coisa que aprendi da arte, é que quanto menos intenção você tem, mais puro você é, mais coerente com a sua intenção maior se é. Não gosto de fazer música dedicada a nada. Na minha música “Galo e Cruzeiro”, na verdade não é galo nem cruzeiro, é a paz. Ela propõe a paz. Em Montes Claros, por exemplo, é um lugar que gosto muito de cantar, porque toda vez que vou à cidade componho alguma coisa. Compus grandes músicas lá, o porquê não sei, mas a cidade me inspira. E olha que não saio do hotel e nem conheço tanta gente. Outro lugar que gosto muito é Catas Altas que é uma cidade que estive tocando algum tempo. Gosto também de Ouro Preto e adoro cantar nos eventos que tem em Tiradentes.

Mas o que eu gosto mesmo é de fazer show em festas populares em que a família está reunida, as pessoas estão nas barracas comendo, se divertindo, tem uns que nem respeita muito a gente, falam coisas, e tem ainda aquele bebum que fica te atazanando o show inteiro. Nesse ambiente, sinto como se eu tivesse ali só para ambientar o local mesmo e soprar uma energia de Deus. É como se nesse ambiente eu fizesse sentido.

Eu tenho um sonho de ver as pessoas na rua sem conflito e isso a gente só enxerga quando está no interior. Eu adoro essa relação com o cotidiano onde eu não interfiro nele, ele que age em mim. Por isso, gosto mais de cantar em festas populares do que no Palácio das Artes.

O Palácio é uma vitrine maravilhosa, a melhor acústica do Brasil, mas me identifico muito com festa popular porque me remete ao passado. O show do teatro que custa caro, a gente faz para uma pequena parcela da sociedade que muitas vezes paga R$ 100, cruza os braços e diz “paguei, agora me divirta, me emocione”, é difícil.


DM: Como você classifica o público do Vander Lee?

VL: Com sinceridade? Tem dois tipos de público: aquele que gosta do que você produz e aquele que gosta do seu sucesso. Tem gente que me pára na rua só porque sou uma pessoa pública, até gosto, mas se passa qualquer outro artista do lado, a pessoa me larga e vai atrás. Às vezes os artistas são completamente diferentes e com discursos que não casam, é contraditório. A pessoa não tem uma linha filosófica interna que faz ela identificar mais com um ou com outro.

Eu acho que o sucesso, o reconhecimento traz 50% de coisas maravilhosas e 50% de coisas complicadas. O fato mesmo é que tudo na vida quando é muito, cansa. Por isso, tenho ficado cada vez mais recluso e aprendendo a cruzar isso de uma forma mais profissional mesmo. Hoje em dia estou fazendo pouquíssimos shows, não tenho tido muita vida pública, entrevista eu nego quase todas e não tenho ido muito à TV. Isso evita me expor tanto. As pessoas é que vão mais lá em casa, eu não quero ter mais esse tipo de sucesso. Isso passou para mim, me sinto realizado vendo as músicas ganhando cada vez mais corpo e descobrindo que as coisas não têm fim.

Tem gente, talvez a maioria, que gosta mais do sucesso do que do artista. Quando sinto que alguém conhece minha obra, eu adoro conversar porque a pessoa sempre tem algo a me dizer. Eu aprendo com essas pessoas, porque é um olhar que eu preciso, é alguém que vai me dizer em que ponto a minha essência o atingiu, ali descubro que a coisa não é tão ampla, que realmente sou uma pessoa só.

Mas não pretendo mais fazer disso minha vida. Minha vida é uma coisa muito pequena, meu dia-a-dia é muito singelo. Preciso de tão pouco para viver, meus filhos bem, amor, minha família, uma boa comidinha, passarinho cantando, essas coisas básicas.

O fato é que aconteceu comigo um amadurecimento rápido em um curto espaço de tempo. Eu devo muito isso ao mundo. Houve um momento que todos me queriam, e nesse momento eu entrei em crise emocional. Comecei a achar isso perigoso, não me soou saudável, comecei a me perguntar se isso era felicidade. Que felicidade o quê, isso é um trabalho pesado, sorrir o tempo todo é muito chato, dizer coisas coerentes sempre e estar coberto de razão em tudo que se fala é muito complicado.


DM: Quais músicas mineiras você recomenda para nossos internautas?

VL: Clube da Esquina Nº 2, de Milton Nascimento e Lô Borges; Baião Barroco, de Juarez Moreira; Nós dois, de Celso Adolfo; Esperando aviões, Galo e Cruzeiro, minhas; Chazinho com biscoito, da Regina Spósito; Arrumação, do Elomar; Rancho Fundo, de Ary Barroso; Linda juventude, do 14 Bis; Tão seu, do Skank; Sobre o tempo, do Pato Fu; Falsa Baiana, de Geraldo Pereira; Papel marchê, de João Bosco.

Essas músicas nortearam meu trabalho. Minas tem esse panorama bem bacana, porque tudo é esteticamente muito rico e tem a ver com nossa riqueza geográfica. O cenário de montanhas é muito inspirador. Acho que essas músicas têm uma alma mineira muito forte, de um mineiro que não é enrustido. É um mineiro interiorano que fala em alto e bom tom, que sabe decantar a própria dor, que tem tempo para isso. É o mineiro da bateia que está no rio peneirando o ouro e buscando nas coisas da vida aquilo que é brilhante, essencial, cristalino, isso é bonito na gente.

Os poetas mineiros são muito especiais, eles não precisam da felicidade. Mineiro tem uma certa forma de pensar que ser feliz dá trabalho, acho tão bonito isso. Mineiro não é exaltador como carioca, nordestino e outros povos, e ao mesmo tempo não é cético como o paulista, o gaúcho, o pessoal do sul. Ele tem uma coisa equilibrada dessas misturas todas que é bonita. Mineiro sabe que tudo é passageiro. Olha que coisa bonita, essa relação que nós temos com o tempo muito mais elaborada.

Eu amo esse lugar e sinto que transmito esse amor em cada nota, em cada canção. Nunca consegui viver muito tempo longe daqui, já morei em outros lugares, mas sempre volto correndo. Me sinto muito inserido aqui. Amo essa comidinha, essa coisa da cestinha depois do almoço, cachaça.

Amo essa hipocrisia que o mineiro cultiva em torno da família, essa coisa de mineiro parecer que não trai. Mineiro é o mais traíra de todos, mente muito. O homem e a mulher mineira parece que nasceram para ser família, fiéis, mas eles não são. Não são porque isso não é da humanidade, mas ele luta tanto, cultiva tanto isso, que chega fazer você se apaixonar por essa luta do mineiro pela família.

E a amizade? A coisa mais difícil do mundo é ser amigo do mineiro. Eu acho difícil, porque é uma pessoa que sempre fala o contrário do que está sentindo. O mineiro dá muita volta e enquanto ele dá volta ele fala coisas díspares em torno do que realmente ele quer falar. Ele fica dando volta tentando assumir uma posição em que ele não vai ser confrontado. Parece que ele não quer o confronto, ele quer ter a razão mas ele não quer impor, aí ele fica ali dando volta. O mineiro é o famoso “dá, mas custa”. É mais ou menos isso que é ser mineiro. Eu posso falar mal do mineiro porque eu não me excluo da coisa, vem paulista, carioca, japonês falar mal de Minas, aí eu brigo, da minha família, falo mal eu.